sábado, 2 de março de 2013

Só Sexo


Enquanto os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as coisas de que era capaz. Amavámo-nos como se o amor fosse apenas um suplente íntimo dessa revolução que nunca mais chegava. A revolução já tinha chegado, mas nós não sabíamos. Só em junho de 1974 se lembraram de nós, fechados naquela casa clandestina. Muitas vezes, ao longo da minha vida, desejei que nos tivessem esquecido ali para sempre. Desejo ingrato, infantil. Tive uma vida boa. Consegui ser a advogada que queria ser, cobrar bem aos ricos para defender melhor os pobres. Encontrei um homem que entende o amor como partilha absoluta – nunca senti o peso do trabalho doméstico ou da educação dos filhos. Tive dois filhos que só me trouxeram alegria e serenidade, e tenho já um neto que parece um reclame sobre o brilho da vida. E tive-te, atrás do espelho, todas as manhãs da minha vida.

Porque foi sempre para ti que me quis bonita, mesmo nos dias escuros. É em ti que penso, quando escolho a roupa ou escovo o cabelo, todos os dias. Na possibilidade de te encontrar, no acaso de uma esquina. Lisboa é tão grande e tão pequena – porque não havia de te encontrar? Queria ser a mesma, nesse encontro. A mesma, com a luz das rugas que me faltavam no tempo em que nos metíamos por dentro do corpo um do outro como se sozinhos fôssemos apenas pedaços de um corpo mutilado. Depois de saírmos da casa, deixaste de me procurar. Creio que te fazias encontrado comigo, mas como eu me fazia encontrada contigo, nunca cheguei a ter certeza que, de fato, me procuravas. Pouco importa. Posso ter inventado tudo, menos o fulgor perfeito dos nossos corpos juntos. Uma vida inteira não basta para apagar da pele o peso magnífico desse fulgor. Só sexo, disseram-me as amigas íntimas, quando eu ainda chorava com elas a saudade do êxtase. Só sexo. Fogo e palha, talvez tenham razão. Mas é disso que trata a vida, a minha vida: só sexo. Contigo. 

O prazer que meu corpo conhece é o que aprendeu no teu, e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para permancer em mim. Todas as noites me acaricio com os teus dedos, fecho os olhos e sugo os teus dedos sob o contorno dos meus e conduzo-te pelo meu corpo como tu me conduzias. Todas as noites tu entras em mim por todas as portas, a tua língua silenciosa desperta vertigens desconhecidas nas partes secretas das minhas orelhas e das minhas pernas e dos meus pés. Todas as noites sinto o castanho dos teus olhos se dissolvendo nos meus com uma felicidade quente, imensa, vejo teus quadris estreitos de rapaz dançando sobre meu ventre, nas minhas nádegas, todas as noites os teus dentes mordem o meu pescoço no sítio exato em que o meu corpo guardava a última fechadura, todas as noites volto a subir a esse monte dos vendavais só nosso. Só sexo, seja. 

Se eu contasse às minhas amigas que tuas palavras eram mínimas, sussurradas com um sorriso trocista de timidez, elas fariam troça de mim. Por isso contei apenas o essencial: que tu me fazias sentir bela. Que conseguiste que eu me sentisse bela a vida inteira. A cada vez que o espelho me anunciava mais uma marca do tempo, mais uma prega na carne, eu acariciava-a com teus dedos, sentindo o pazer que tu sentirias, ao descobrires novas rotas no mapa do meu corpo. 

Saí do consultório e pensei que tinha de te encontrar. Não sabia como, há pelo menos vinte anos que não tenho teu telefone, mas sei vagamente onde moras e onde trabalhas. Cinco e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro, falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo e dizes: “Tens outra vez o cabelo muito comprido”. Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como vai me ser útil esse teu elogio, nos meses que me faltam. Prendo-te a mão ao meu cabelo. Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se, por acaso, não quero ir até tua casa para ver umas fotografias dos tempos antigos. Fechas a porta e começas a beijar-me, primeiro os olhos, depois o lóbulo da orelha. Depois o pescoço enquanto teus dedos me abrem a camisa e me procuram os seios. 

Beijamo-nos de olhos abertos, como sempre, e é de olhos abertos que procuro cada uma das novidades do teu corpo, os sítios onde tua pele dobra, o cheiro agora mais adocicado do teu sexo. Entramos um no outro de olhos abertos, como se mergulhássemos num mar de silêncio e fogo escuro. A meio da noite peço-te que me deixes ficar contigo um mês – “só um mês, prometo. Posso?” Não me respondes, claro. A não ser que os beijos sejam uma resposta, e preciso acreditar que sim. Preciso dessa vida verdadeira que escondi debaixo da tua pele, antes que o cabelo me caia, antes que comecem os enjôos e as dores, antes que meu corpo seja tomado pelo cheiro miserável da doença. Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo.


Inês Pedrosa, in Fica comigo esta noite (Contos)


 











* Inês Pedrosa é escritora, da leva dos novos nomes da literatura lusófona contemporânea, assim como Valter Hugo Mãe, José Luis Peixoto, Jorge Reis-Sá, Miguel Sousa Tavares e Gonçalo M. Tavares. Seus romances e contos são versões pós modernas do tema humano por excelência - o amor - uma narrativa intimista, forte, delicada e visceral. ** [do livro que ilustra o post, não consegui encontrar outras referências além do local de onde saiu a imagem...]

Nenhum comentário:

Postar um comentário