Abrindo a janela matinal, o cronista deparou com um firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Todas ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação que chegava até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem.
E como se o cronista perguntasse – Fala, amendoeira! Por que foges ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares? a árvore pareceu explicar-lhe:
– Não vês? Começo a outonear. É 20 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
– E vais outoneando sozinha?
Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
– Somos todos assim.
– Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
– Não me entristeças.
– Não, querido. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves… Outoniza-se com dignidade, meu velho.
[Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós.]
Carlos Drummond de Andrade, in Fala Amendoeira
*
* o outono é minha estação predileta, ever! penso nele como uma "outra primavera, cada folha uma flor" (Albert Camus). ** alguém mais vê em Strawberry Fields Forever uma canção outonal? sempre achei. será pelos violinos? muito provavelmente: violinos, para mim, estarão sempre vinculados à esta outra melodia outonal...
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