terça-feira, 13 de novembro de 2012

No princípio era o verbo

  





Ela disse:
- Sabíamos que o fim estava próximo, por isso pusemos tudo num poema, para contar ao universo quem éramos, por que estávamos aqui e o que dizíamos, fazíamos, pensávamos, sonhávamos e desejávamos. Embrulhamos nossos sonhos em palavras e moldamos as palavras pra que vivessem para sempre, inesquecíveis. Depois enviamos o poema como um padrão de fluxo, para aguardar no coração de uma estrela, emitindo sua mensagem em pulsos, erupções e chiados por todo o espectro eletromagnético, até que, em mundos a mil sistemas solares dali, o padrão fosse decodificado e lido, e se tornasse um poema de novo.

- E aí o que aconteceu?

  Ela me olhou com seus olhos verdes, e foi como se ela estivesse me olhando através de sua meia máscara de Antígona, mas como se aqueles olhos verde claros fossem apenas uma parte diferente, mais profunda, da máscara.

- É impossível ouvir um poema sem que ele mude você - observou ela. - Eles o ouviram, e o poema os colonizou, tomou posse deles, e os habitou. Os ritmos do poema passaram a fazer parte do modo de pensar deles. Suas imagens transformaram para sempre as metáforas deles. Seus versos, seu modo de ver, suas aspirações se tornaram a vida deles. Depois de uma geração, as crianças já nasciam sabendo o poema, e logo, porque essas coisas são assim, já não nasciam mais crianças. Não havia necessidade delas, não mais. Só havia um poema feito carne que andava e proliferava por toda a vastidão do conhecido.

  Então ela se inclinou em minha direção e - acho que foi um beijo... acho. Bem, ela pressionou seus lábios contra os meus e, depois, satisfeita, recuou.

- Você quer ouvir? perguntou, e fiz que sim, sem saber direito o que ela estava oferecendo, mas convencido de que precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a me dar.

  Ela então começou a sussurrar algo no meu ouvido. Isso é o mais estranho na poesia - dá pra saber que é poesia, mesmo quando é em uma língua que a gente não conhece. Você pode ouvir Homero sem entender uma palavra, e mesmo assim saber que é poesia. Já ouvi poesia polonesa, poesia inuíte, e eu sabia o que era sem saber. Seu sussurro era assim. Eu não entendia a língua, mas suas palavras me atravessavam, perfeitas, e em minha mente eu via torres de vidro e diamante, pessoas com olhos do verde mais pálido e, por baixo de cada sílaba, sentia o avançar sem trégua do oceano invencível.



Neil Gaiman (do conto Como conversar com garotas em festas), in "Coisa Frágeis"





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* e que fique registrada minha sugestão [lírica] para o fim dos tempos  - que tudo acabe em poesia. ** fotos Eric Cahan (from Sky Series Works).

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