domingo, 24 de novembro de 2013

A casa


"Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão tem uma velha ferrugem e o trinco se encontra num lugar que só a mão filial conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões e samambaias, que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste."

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"Na casa materna as coisas vivem como em preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente."

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"A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas: tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras aberturas para os quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro da Juventude com o dorso puído de tato e de tempo Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos filiais." 

[...]

"Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe porque queima às vezes uma vela votiva." 


Vinícius de Moraes, [trechos]A casa Materna 


*










* "a casa é um símbolo fixo, um ponto de estabilidade para o ser, enquanto se torna consciente da fluidez do mundo. um contraponto, um fragmento de duração perdida, que, simbolicamente, se reilumina junto ao fogo, carregado de tempo vivido." Davi Arrigucci Jr

** dos temas infinitos que preenchem este blog, este é mais um que me faz baixar os olhos e pousar as mãos, esgotada de palavras que me levem além - "a infância é certamente maior que a realidade” (Bachelard)

*** fotos: Eneida Serrano

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