domingo, 19 de junho de 2011

Memória do fogo

Passei o dia relembrando Galeano (o jovem senhor, embriagado de vida no vídeo do post anterior).

Adorei ver o escritor vivíssimo, na praça, acompanhando as manifestações juvenis, generoso, professoral, ainda libertário, confiante e otimista. Diverti-me com suas frases de efeito e voltei a me impressionar com sua verve. 

Galeano foi fundamental na formação da geração X latina - também conhecida como geração coca-cola - a turma que cresceu com a ditadura, brigou pelas eleições diretas e chamava os norteamericanos de imperialistas e os europeus de colonizadores.

Busquei na estante meu exemplar de As veias abertas da América Latina. Sumiu. Tem acontecido com frequência - ou meu lar é abrigo para um gatuno ilustrado ou minha memória anda roubando meu lustre - que fim teve ou dei ao livro não sei.

Houve um tempo que este livro era como a bíblia de professores e alunos no país - as páginas amassadas e sublinhadas nas bolsas de lona e couro cru. O subtítulo entregava: "cinco séculos de pilhagem de um continente". Desde os anos 90, entretanto, quando tentou-se enterrar as ideologias, Galeano passou a ser considerado simplório, de pesquisa histórica rasteira e foi solenemente esquecido pelas novas gerações.

Em 2009, antes de uma reunião de cúpula com os governantes da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), em Washington, o presidente venezuelano Hugo Chávez, presenteou com um volume - em espanhol, por supuesto - o líder americano Barack Obama. Em menos de uma semana, o título passou a figurar como o segundo mais vendido pelo site Amazon. A imprensa americana tripudiou: qualificou-o como "obscuro", "empoeirado", a decades-old-book, "o livro de cabeceira do presidente venezuelano"... 

Triste fim para uma obra literária. Melhor seria se tivesse se perdido das estantes do mundo para sempre.


Mas a trilogia "Memória do Fogo" não se perdeu com o tempo: ainda está guardada, com carinho, junto de outros livros que me fizeram (está lá na primeira página, escrito com uma letrinha caprichada e ainda habituada ao lápis e caneta: lido em 1986). Mais literatura do que fonte histórica, os três livros resgatam os mitos, lendas e os embates entre nativos e colonizadores, carregando no lirismo e na emoção. Uma obra épica, poética e fantástica que me incitou a abraçar minha natureza mestiça, latina e feminina.

É do primeiro volume, Nascimentos, que pincei o trecho abaixo:



Se engana o fogo

[1562, Maní - México, província de Yucatán, cidade sede da dinastia maia]

Frei Diego de Landa atira às chamas, um após o outro, os livros dos maias. O inquisidor amaldiçoa Satanás e o fogo crepita e devora.
Em volta do queimadeiro, os hereges uivam de cabeça para baixo. Pendurados pelos pés, em carne viva pelas chibatadas, os índíos recebem  banhos de cera fervendo enquanto crescem as chamas e gemem os livros, como queixando-se.Esta noite se transformam em cinzas oito séculos de literatura maia. Nestes longos rolos de papel de casca de árvore, falavam os sinais e as imagens: contavam os trabalhos e os dias, os sonhos e as guerras de um povo nascido antes que Cristo.Com pincéis de pêlos de javali, os sabedores de coisas tinham pintado estes livros iluminados, iluminadores, para que os netos dos netos não fossem cegos e soubessem ver-se e ver a história dos seus, para que conhecessem os movimentos das estrelas, as frequências dos eclipses, as profecias dos deuses e para que pudessem chamar as chuvas e as boas colheitas de milho.

Ao centro, o inquisidor queima os livros. Ao redor da fogueira imensa, castiga os leitores. Enquanto isso, os autores, artistas-sacerdotes mortos há anos ou séculos, bebem chocolate na sombra fresca da primeira árvore do mundo. Eles estão em paz, porque morreram sabendo que a memória não se incendeia. Não se cantará e dançará por acaso, pelos tempos dos tempos, o que eles tinham pintado?
Quando queimam suas casinhas de papel, a memória encontra refúgio nas bocas que cantam as glórias dos homens e deuses, cantares que de gente em gente ficam, nos corpos que dançam ao som dos troncos ocos, dos cascos de tartaruga e das flautas de taquara.




*









* Ainda na universidade, utilizei o texto acima como referência para um sketch teatral que escrevi, uma encenação de cinco minutos onde pretendi recontar a caça às bruxas do período medieval, as origens do halloween e a inquisição católica (mixórdia quando pouca é bobagem). A disciplina era Inglês e a peça deveria ser apresentada em inglês. O ator principal, que interpretava o inquisidor romano - um colega que era também soldado militar e que servia no Corpo de Bombeiros  - decidiu que as falas dele ficariam mais dramáticas se substituísse algumas palavras e expressões pelo alemão... can you picture that? A composição da personagem não convenceu a professora e acabei reprovada na disciplina, mesmo com o texto todo escrito e entregue em inglês. Ainda hoje, quando a memória insiste em lembrar desta flexível senhôura sai um: w-i-t-c-h, sometimes with w, sometimes with b...

2 comentários:

  1. Lindo amiga!
    Fiquei emocionada...lembrei do meu tempo de "lutas" e de minha bolsa de couro e tecido peruano.
    Das anotações nos meus "velhos livros" e dos "sonhos" rabiscados neles.
    Sonho de uma geração que não se percebe mais...A maioria está disfarçada de "senhores de terno e gravata" e muitas amigas..."de senhoras aposentadas".

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  2. o estigma de "senhorinha aposentada" é duro de roer, néam? Obrigada pela visita, amiga. volte sempre!

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