domingo, 5 de fevereiro de 2012

Quando se volta para dentro...


"É incrível o que uma pessoa tem guardado dentro de si. O escritor tem a chance de conhecer esse mundo secreto e silencioso que poucos visitam. Ele é formado por tudo aquilo que somos: tudo que vimos, ouvimos, tocamos, saboreamos, cheiramos, pensamos, sentimos; o que recebemos de fora e o que fazemos com isso do lado de dentro. A grande maioria de nós só recorre a uma parte pequena desse banco de dados, porque só precisa disso para sua vida cotidiana.

O escritor, quando se volta para dentro em busca de algo para contar, começa a conversar com seu eu interior, que com frequência é radicalmente diferente dele. Essa experiência é reveladora, é maravilhosa e é assustadora.

O policial que senta para escrever um romance pode encontrar lá dentro um assassino que sente prazer em mutilar; o policial pode se recriminar e se envergonhar por ter deparado com esse reflexo distorcido de si mesmo. A dona de casa pode descartar a esposa fiel e a mãe exemplar que é e substituí-la na página em branco por uma devassa que vai para a cama com todos os homens e aborta os filhos que seriam um incômodo. Por outro lado, o professor idoso que prepara seu romance nas horas vagas ressuscita o pai querido e traz de volta a noiva que o dispensou, e a secretária entediada que mantém um diário imagina um passeio em Veneza que não fez e a amiga compreensiva que nunca teve.

Alguém pode acusar o escritor de ser um alienado. Por que se isola das pessoas reais para congregar com criaturas imaginárias? Por que imagina a vida de outros ao invés de viver a sua? Em resumo, por que não lê menos e vive mais? É lá fora que está a vida.

O escritor sorri, sacode a cabeça, junta as pontas dos dedos e responde com calma e sem vergonha: não, a vida está aqui dentro".



Paul Marcel, in Epifania
 
 
 
 
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*porque um dia, uma amiga que me chama carinhosamente de "escritora", pediu-me pra contar-lhe sobre meus medos. 'meus medos? a miséria', disse. 'e a Terra sem água potável. são esses. acho que só esses.' mas diante de amizade tão íntima, desisti de exibicionismo: 'ah, tem mais uma coisa que temo [e só de pensar tremo]: tenho horror do que vai dentro de mim...' 
 

Um comentário:

  1. Pois não disse, minha amiga escritora? O que não deves temer é colocar para fora as maravilhas que estão aí dentro!

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