quarta-feira, 27 de abril de 2011

Em qual cabelo perdido posso te chamar de careca?*


Hoje aprendi sobre o Paradoxo Sorites (σωρείτης sōreitēs – grego, significa um montinho). Imagine que você tem um montinho de areia com 2.756.678.345.890.4564.128.345 grãos.
2.756.678.345.890.4564.128.345 grãos formam, sem dúvida, um montinho de areia.
Então, com uma poderosa pinça pega-grão, você tira 1 grão.
O monte de areia deixou de ser um monte de areia? Não.
Você tira mais um grão.
O monte de areia deixou de ser um monte de areia? Não.
E tira outro grão. E outro, e mais outro. E vai tirando.
Um monte de areia não deixa de ser um monte de areia só porque você tirou um grãozinho.
Porém, vai chegar um momento em que sobrarão apenas 2 grãozinhos.
E se você tirar um, o que vai sobrar não tem a mínima cara de um montinho de areia.
O paradoxo existe porque a lógica se sustenta (os gregos, por exemplo, dizem que 1 grão, ou mesmo “grãos negativos”, são um montinho em teoria) mas na vida real, pegando gente na calçada, ninguém chama grão de monte.

A história ilustra o conceito do vago, do impreciso.

Afinal, na base do grão em grão, qual o número mágico em que as coisas trocam de nome?

Se você for arrancando seus fios de cabelo, em qual deles eu posso te chamar de careca?

Adoro implicar com a nossa mania de medições "pseudo-responsáveis" de relatórios, números de impressões, audiência, segmentações, classes, notas escolares. E o paradoxo me incentiva.

  • Em qual centavo você fica rico?
  • Em qual segundo você fica velho?
  • Em qual milímetro você fica longe?
  • Em qual melanina você vira negro? Branco? Amarelo?
  • Em qual cargo você vira alguém?
  • Em qual leucócito você pegou uma infecção?
Muitas medições precisas contêm interpretações imprecisas. E certamente estamos mais preparados e acostumados com a primeira parte dessa equação.
Daí termos inventado o tal "critério". Mas aí, de novo, em qual dos nossos devaneios deixamos de tê-lo?

...



* venho pensando e discutindo e argumentando e lendo e remoendo um monte com 2.756.678.345.890.4564.128.345 questões deste tipo - se uma nota de prova pode avaliar o conhecimento e o progresso pedagógico dos meus filhos; quantos fios de cabelo branco dão a dimensão de minha idade; quantas viagens são necessárias para que se mereça o título de "connaisseur"; e se um leitor apaixonado por uma cidade ou país mas com o supremo azar de nunca ter viajado até seu destino de sonho não se torna mais familiarizado com o ambiente do que o morador comum, tão ensimesmado com sua própria vida que não enxerga o mundo que espalha ao seu redor ou o porque da moça do censo registrar-me como "parda" se meus pais e meus filhos são "brancos" (acho que o que ela quis foi escrever "parva", pois se deu conta que, mesmo minha renda sendo maior do que a do meu marido e a maioria dos bens familiares estarem em meu nome, ainda assim o chefe da casa é ele)... E as infinitas refexões que sugerem a pergunta "Em qual cargo você vira alguém?". Mais um textaço de autoria do Wagner Brenner, que escreve no (uótimo) update or die.

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