Um pensador manda comer menos, mais plantas que animais, com prazer. Outro, culpadíssimo, só come plantas até chegar o dia dos bichos bem tratados e bem matados. Tudo isso é senso comum, mas por enquanto não há couve orgânica e galinhas felizes para todos. Vamos fazendo nossa pressão sobre os fornecedores, passem a culpa para eles que já começaram a se sensibilizar e que por sua vez podem pressionar outros.
Não temam o castigo na vida eterna por termos tratado mal nossos semelhantes, as vacas, os porcos, as galinhas. Sempre podemos retrucar com delicadeza a quem nos vier castigar, que nós humanos tão pouco fomos criados todos iguais, todos felizes, pastando com alegria nos campos do Senhor. Temos pestes, sofrimentos, vivemos em poleiros um tanto quanto sem higiene e sem água ou com água demais, dependurados nos morros, em guerras santas. Os que escapam dessa sorte estão na mesma proporção que os orgânicos, são os ricos, pouquíssimos no cômputo geral e que também não escapam do final infeliz. Morrem todos. Está tudo sob controle, os senhores vão melhorando aí, nós vamos tentando o melhor aqui, mas nada de neuras malucas, ou galinhas sendo mortas com anestesia peridural. Devagar com a louça.
Na verdade temos aperfeiçoado loucamente o nosso jeito de matar gente, com mísseis, bombas, gases, claro que podemos aperfeiçoar o de matar animais. Claro.
Confesso que um dia quis ser normal como minha mãe e me preparei para matar uma galinha. Vou me plagiar, porque já contei aqui, há muito tempo. Nenhum remorso ou culpa, bem treinada, dei um pequeno corte de faca afiada no seu pescoço e ela me fez o favor de morrer imediatamente, sem sofrimento e sem um pio. Coisa de segundo. Se eu consegui, as grandes fazendas também vão conseguir na hora que quiserem.
Pensei que matar um bicho faria o mundo revirar, nós ali debruçados sobre a morta. Mas não havia tristeza no coração de ninguém, nem de quem matou nem de quem assistiu. A vida continuava igual numa radiosidade intensa e parada, tudo acontecendo no ramerrão de sempre. O galinheiro, então, tem um desdém enorme pela morte, vieram para perto bicar algumas coisas e pensavam "antes ela do que eu".
Ainda tenho vontade de mudar para aquele sítio onde matei a galinha. Temei, penas, temei! Sozinha, sem relações humanas para administrar, força no coração para matar sem medo e sem perder a ternura, dia após dia, o mar azul, o cheiro de lenha, a chuva criadeira, mas o mais importante é a sozinhez de velha louca, a absorção diária e ínfima da escuridão até alcançar a indiferença feroz das galinhas para com a vida e para com a morte."
...
* textaço da sempre deliciosa Nina Horta, transcrito tal como saiu na Folha de São Paulo, em 7/4/11 (aliás, já contei que Nina publicou uma carta minha, inteirinha, em sua coluna de quinta, na Folha? Nãããooo? Preciso lembrar de contar - foi A GLÓRIA!)
Nenhum comentário:
Postar um comentário