(Japão, março de 2011)
"Sendai, 15/03/11
Sinto-me uma minúscula partícula de tinta em uma obra de arte surrealista. Mas também bendito por ter amigos maravilhosos que estão me ajudando muito. Agora hospedo-me em casa de um amigo. Compartilhamos de tudo: água, alimentos e um aquecedor a querosene. Dormimos em fila em um só cômodo, comemos à luz de velas, compartilhamos histórias. É quente, amigável, bonito.
Durante o dia ajudamos uns aos outros a limpar a desordem. O pessoal senta nos automóveis, olhando as notícias em suas TVs, ou vão para a fila da água potável, quando a fonte está aberta. Se alguém tem água corrente em suas casas, deixam um sinal para que o pessoal traga suas vasilhas. Absolutamente incrível é que onde estou não aconteceram saques, nem empurrões nas filas. O pessoal deixa aberta a sua porta principal, já que é mais seguro quando tem um terremoto. A gente segue dizendo: "Oh! Assim é como nos velhos tempos, onde todos se ajudavam mutuamente!"
Nada é lavado durante vários dias. Sentimo-nos imundos, mas por fora. Existem preocupações muito mais importantes para nós agora. Encanta-me essa conformação com o não essencial. Viver plenamente do instinto, da intuição, do cuidado, do que se necessita para a sobrevivência, não só minha, porém de todo o grupo. Outra coisa incrível é que parece existir estranhos universos paralelos se sucedendo: as casas estão uma desordem, entretanto, em muitos lugares, estão com os varais cheios de roupa secando ao sol. O pessoal faz sacrifícios para conseguir água e alimentos, entretanto algumas pessoas vão caminhar com seus cachorros. Tudo ocorre ao mesmo tempo - até percebemos toques inesperados de beleza - o silêncio da noite, por exemplo. Não existem automóveis rodando. Não se encontra ninguém nas ruas. E os céus à noite se encontram cheios de estrelas. Em geral se vê poucas, mas agora são muitas estrelas. As montanhas de Sendai permancem sólidas como há séculos e com o ar fresco pode-se ver os seus recortes contra o céu, magnificamente.
Volto à minha casa (mais para um barraco depois de toda a destruição) todos os dias, agora para enviar esse e-mail, desde que a eletricidade esteja operante, e encontro alimentos e água que alguém deixou na entrada. Não tenho nem idéia de quem os colocou. Os anciões com chapéus verdes vão de porta em porta, para ver se tudo está bem. Toda gente conversa com estranhos, todos oferecendo ajuda e informação. Não vejo sinais de temor. Resignação sim, porém nem medo nem pânico. Dizem-nos que podemos esperar réplicas, inclusive com terremotos importantes, por um mês ou mais. Estamos tendo tremores constantes, movimentos, sacudidas, ruídos... Tenho a sorte de viver em Sendai, que é uma região elevada, um pouco mais sólida que outras regiões desta ilha.
Ontem o marido de uma amiga chegou do interior do país, trazendo alimentos e água. Bendições de novo. Não sei como descrever, mas às vezes é que como saíssse de mim e olhasse tudo de cima. E o que vejo é o futuro. Que estamos dando um enorme passo evolutivo, justamente nesse momento. Sinto em meu coração uma ampla abertura. E não há como descrever isso com palavras...
Meu irmão me perguntou como é sentir-se tão pequeno e frágil diante da força destruidora da natureza. Respondi que não me sinto assim. Em nenhum momento senti-me fraco. Ao contrário, sinto que faço parte de algo muito maior do que eu. Sugeri a ele que percebesse a Terra como uma gestante prestes a parir. O que sentimos, aqui no Japão, foram suas contrações, uma enorme onda vibratória que antecede o parto. Dolorido, porém divino.
Envio amor a todos;
Inácio Amaral
...
(outono no Japão, outubro 2011)
"Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser.
Tudo morre, tudo refloresce; eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser.
Tudo se separa, tudo volta a se encontrar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o aqui rola a bola acolá.
O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade."
F. W. Nietzsche in Assim falou Zaratustra
*
* em 2012, como ontem e sempre, permaneço enviando amor a todos. Obrigada pela visita! ** carta recebida por correio eletrônico à época da tragédia no Japão, em março deste 2011. *** citação no título: Mateus, capítulo 6.
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