Quem vive segundo seu desejo é, no mínimo, mais alegre.
Esta é mesmo uma boa definição da alegria: a sensação de que nosso desejo está engajado no que estamos fazendo, ou seja, de que nossa vida não acontece por inércia e obrigação. Inversa e logicamente, muitos estimamamos dever nossa (grande ou pequena) infelicidade ao fato de termos dirigido a vida por caminhos que - droga! - não eram exatamente os que queríamos. Pois bem, esse pressuposto bate de frente com uma pequena constatação: o "nosso desejo" nunca é UM desejo definido por UM objeto ou por UM projeto. Não existe, nem escrito lá no fundo escondido de nossa mente, UM querer definido, que poderíamos descobrir e praticar com afinco e satisfação porque estaríamos fazendo aquela coisa ou caçando aquele objeto aos quais éramos, por assim dizer, destinados. Nada disso: de uma certa forma, todos os objetos e os projetos se valem e nenhum é "nosso" objeto ou projeto específico. Ou seja, nós desejamos sempre segundo as circunstâncias, os encontros, as oportunidades - segundo as tentações, se você preferir.
Somos volúveis? Nem tanto, pois cada objeto e projeto não substitui necessariamente o anterior. O que acontece é que desejar é uma atividade inventiva a jato contínuo.
Por consequência, mesmo quando estamos alegremente convencidos de estar fazendo o que queremos com nossa vida, nunca estamos ao abrigo do surgimento de desejos novos. Claro, podemos aceitar esses desejos novos. Mas dar ouvidos aos novos desejos nem sempre é fácil. Imaginemos, por exemplo, alguém que esteja no meio de sua vida profissional e num bom momento de sua vida amorosa. Nesse caso, provavelmente, o novo desejo será silenciado, reprimido, menosprezado ("deixe para lá, é besteira"). Resultado: continuaremos declarando que estamos vivendo a vida que queremos (e, em parte, será verdade); só que, de repente, sem entender por quê, perdemos nossa alegria. Por que razão negligenciamos nossos novos desejos? Simples: por serem novos, eles acarretam a ameaça de uma ruptura no presente: afetos e laços que poderiam ser perdidos, medo da solidão e preguiça dos esforços necessários para reinventar a vida.
Infelizmente, essa negligência tem um custo alto. Sempre entendi assim a "Metamorfose", de Kafka: alguém acorda e o que até então era uma vida normal e legal, de repente, aos seus olhos, é uma vida de barata.
Às vezes, procuramos em vão as causas de uma depressão: não houve lutos ou perdas, nada disso; está tudo bem, trabalho, família, filhos e tal, mas entristecemos, fumamos e bebemos como se quiséssemos encurtar a vida, engordamos como se estivéssemos num mar de frustração, precisando urgentemente de gratificações alternativas (e de um chocolatinho!). Em muitas dessas vezes, a origem da depressão não é uma perda, nem propriamente uma frustração, mas a aparição de um desejo novo que não foi reconhecido. E os novos desejos, sobretudo quando são silenciados, desvalorizam a vida que estamos vivendo.
Moral da estória: Não existem vidas definitivamente resolvidas, pois novos desejos surgem sempre.
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* mais uma do Contardo Calligaris (também pode ser lido como continuação deste post aqui).
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