"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou os poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía."
Em O filho de mil homens (escrito pelo angolano Valter Hugo Mãe) todas as personagens começam assim, a cair para o poço sem fundo delas mesmas, cercadas de solidão por todos os lados. Porém, a cada página, elas se vão entrelaçando entre si, encontrando umas nas outras o fio da sua própria meada, a continuação da sua margem. E as ilhas que, no início eram gente, vão-se juntando até formarem um continente.
"Farto como estava de viver sozinho, aprendera que a família também se inventava".
O livro conta a história de Crisóstomo, o pescador que, aos quarenta anos, "assumiu a tristeza para reclamar a esperança".
E é nesta pedra de toque, que aquilo que tinha tudo para ser um
livro triste torna-se uma história luminosa, um relato de oportunidade e
expectativa. Um pescador como aquele outro, de homens e mulheres. Na sua rede: uma mulher, um filho, uma
mãe, um tio, uma criança, um velho; todos diferentes, todos perfeitos nas suas imperfeições,
todos a dar o passo que atravessa a ponte e os conduz ao outro. Um encontro que é também a própria felicidade - "ser o que se pode é a felicidade".
"É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa".
O filho de mil homens é um regalo para os olhos, uma obra profundamente poética e encantada. Uma ode à fraternidade e à perseverança. Como escreve o autor sobre Isaura, que "amava sem ter, porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar era amar".
"O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fossemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós".
*
* não sei se foi a sorte, o destino ou a coincidência que depositou em minhas mãos O filho de mil homens, neste mês de dezembro. mas foi, certamente, uma espécie de magia que brindou-me com as palavras que tenho dificuldade em encontrar sempre que a intenção é celebrar e agradecer a amizade e os amigos que me fizeram e me constroem. mais uma vez, os escritores falaram por mim. este agradecimento também vai para vocês, caríssimos ** "tem gente que é só passar pela gente que a gente fica contente. tem gente que sente o que a gente sente e passa isto docemente. tem gente que vive como a gente vive, tem gente que fala e nos olha na face, tem gente que cala e nos faz olhar. toda essa gente que convive com a gente leva da gente o que a gente tem e passa a ser gente dentro da gente. um pedaço da gente em outro alguém." (Fernando Sabino, in O encontro marcado) *** na imagem, o escritor Valter Hugo Mãe, lê carta escrita especialmente para seus leitores brasileiros presentes na Flip de 2011. **** título inspirado em frase do poema Amigo, de Alexandre O'Neill:
Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo.
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!
Que belíssimo post! Feliz dia do Amigo, Luciene!
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