"Ora, nosso século nos fez compreender uma coisa enorme: o homem não é capaz de mudar o mundo e nunca irá mudá-lo. É a conclusão fundamental de minha experiência de revolucionário. Conclusão, aliás, tacitamente aceita por todos. Mas há uma outra que vai além. Ela é teológica e diz: o homem não tem o direito de mudar aquilo que Deus criou.
Pode-se substituir completamente a humanidade por uma outra, isso não impedirá que continue intacta a evolução que vai da bicicleta ao foguete. O homem não é o autor dessa evolução, é simplesmente um executante. E mesmo um pobre executante, já que ele não conhece o sentido daquilo que executa. Esse sentido não nos pertence, só estamos aqui para fornecer a Deus a carne humana.
Pois a Bíblia não nos pede que encontremos o sentido da vida. Ela nos pede que procriemos. Amai-vos e procriai. Entende? O sentido desse 'amai-vos’ não significa absolutamente amor caritativo, misericordioso, espiritual ou passional, mas quer dizer simplesmente: fazei amor!, copulai! trepai! É nisso e apenas nisso que consiste o sentido da vida humana. Todo o resto é besteira.
Por que vivemos? O que é essencial na vida? O essencial é perpetuar a vida: é o parto, e aquilo que o precede, o coito, e o que precede o coito, a sedução, isto é, os beijos, os cabelos soltos ao vento, as calcinhas, os sutiãs bem cortados, mais tudo o que torna as pessoas aptas para o coito, isto é, a comida, não a gastronomia, essa coisa supérflua, mas a comida que todo mundo compra, e com a comida o papel higiênico, as fraldas, o sabão em pó. É o círculo sagrado do homem, e nossa missão é não apenas descobrí-lo, aprendê-lo e delimitá-lo, mas torná-lo belo, transformá-lo em canto.
Nossa vida não passa de miséria maquiada! Nós somos os maquiadores da miséria! E nesse caso, onde está a grandeza da vida? Se estamos condenados à comida, ao coito, ao papel higiênico, podemos ainda nos orgulharmos de proclamar-nos livres?
A liberdade... ora, ao vivermos nossa miséria, pode-se ser infeliz ou feliz. É nessa escolha que consiste nossa liberdade. Somos livres para dissolver nossa individualidade na panela da multidão com um sentimento de derrota, ou então com euforia. Minha escolha, minha cara senhora, é a euforia."
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* trecho [recortado] do livro Identidade, de Milan Kundera. ** pra ti, Fábio T.
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