"Afonso:
Conheci a Amélia ainda na primária. Foi o prelúdio do que seria o amor. Um
ligeiro esboço de emoções. O primeiro devaneio, que faz que alguém ganhe relevo
no meio de todos os outros. Como se o sol lhe batesse com mais intensidade ou
os sons de todos se agachassem para que a sua voz pudesse cintilar. Para os
outros era magricela. Para mim, elegante. Para os outros não passava de um
nariz empinado, para mim, inteligente. Simplesmente fascinante. Segura de si. Talvez
não com o mesmo deslumbramento, ou talvez muito longe disso, mas a Amélia
correspondia às minhas atenções. Conversava comigo no muro do recreio – pois a
escola ainda separava os meninos e as meninas. E esperava por mim no final das
lições para me acompanhar a casa. Partilhava comigo as suas
ideias de futuro, os seus medos e as suas ambições para quando fosse grande.
Sentia-me um privilegiado.
Sozinho, em casa, exasperava com saudades dela. Sobretudo nas férias grandes. Faltava-me o bálsamo da sua face para me encher os olhos. E, como não tinha fotografias dela, tentava desenhar o seu rosto no papel. Mas não era grande artista. Nunca fui de pinturas. Sentia-me impotente a passar para o papel as linhas que tinha na minha cabeça. Enfurecia-me. Amarrotava o papel e deitava-o fora com raiva. Por vezes até chorava. Foi quando descobri que a saudade dói. Ou será o amor?
Um dia entreguei-lhe um livro de autógrafos. Um livrinho que dávamos aos amigos para que escrevessem umas dedicatórias, uns pensamentos, uns poemas ou tão simplesmente fizessem uns desenhos. Com folhinhas debruadas a doirado e uma fitinha colorida para marcar a folha onde tinham de escrever. Passados todos estes anos, dá gosto revisitar estes pedaços de papel que são pequenas páginas de grandes memórias. Lembro-me que Amélia escreveu um poema lindo. De letra forte. Bem carregada. Como ela, que sempre tinha sobressaído entre as outras, reparei na sua letra S. Eu escrevia ainda os esses como minha mãe me ensinara. Uma perninha, depois uma cabeça redondinha e o resto do corpo arqueado, como as costas de um gato sentado. Mas a letra dela era já emancipada. Escrevia os esses como uma cascavel, uma linha altiva, com duas curvas, mas de cabeça levantada.
Sozinho, em casa, exasperava com saudades dela. Sobretudo nas férias grandes. Faltava-me o bálsamo da sua face para me encher os olhos. E, como não tinha fotografias dela, tentava desenhar o seu rosto no papel. Mas não era grande artista. Nunca fui de pinturas. Sentia-me impotente a passar para o papel as linhas que tinha na minha cabeça. Enfurecia-me. Amarrotava o papel e deitava-o fora com raiva. Por vezes até chorava. Foi quando descobri que a saudade dói. Ou será o amor?
Um dia entreguei-lhe um livro de autógrafos. Um livrinho que dávamos aos amigos para que escrevessem umas dedicatórias, uns pensamentos, uns poemas ou tão simplesmente fizessem uns desenhos. Com folhinhas debruadas a doirado e uma fitinha colorida para marcar a folha onde tinham de escrever. Passados todos estes anos, dá gosto revisitar estes pedaços de papel que são pequenas páginas de grandes memórias. Lembro-me que Amélia escreveu um poema lindo. De letra forte. Bem carregada. Como ela, que sempre tinha sobressaído entre as outras, reparei na sua letra S. Eu escrevia ainda os esses como minha mãe me ensinara. Uma perninha, depois uma cabeça redondinha e o resto do corpo arqueado, como as costas de um gato sentado. Mas a letra dela era já emancipada. Escrevia os esses como uma cascavel, uma linha altiva, com duas curvas, mas de cabeça levantada.
Senti-me na minha condição de menino – que era – na carteira inclinada da primária, com o tinteiro de porcelana e um rego escavado na madeira para segurar os lápis. Enquanto ela, apesar de franzina, parecia já não caber naqueles bancos de madeira. Parecia ser já madura, com letras de gente grande. Pela primeira vez na vida senti não estar à altura de alguém. O magnetismo do seu temperamento forte deixava-me intimidado. Sentia-me um menino frágil. Mas depois pensei, que diabo, nem tudo estava já perdido. Eu também podia evoluir. Como os vendavais começam em simples brisas, também podia começar com coisas simples. Podia começar por mudar a grafia. Por exemplo, escrevendo os esses como os da Amélia. Então, durante dias, espantei o meu S de gato sentado e amestrei a mão para o desenho da sua serpente cascavel. Uma e outra vez. E a partir daí, sempre que escrevia um S, sorria. Era como um soneto. Um S de amor.
Entretanto acabou a primária. Vieram as férias grandes e ela partiu para outra escola. Via-a de tempos em tempos. Estudava os seus horários e forçava encontros, ainda que dando um ar de casualidade. Mas estes eram cada vez mais breves e espaçados. A nossa história tinha cada vez menos verbo, cada vez mais reticências e espaços em branco. Um dia, não sei quando, sem dar por isso, teve um ponto final. Restaram imagens aprazíveis de uma infância feliz e de um coração que se tornou mais sensível e aprendeu uma outra forma de amor. E restaram até hoje os esses de cascavel da Amélia, que todos os dias me saem dos dedos, agora já sem esforço, de forma rotineira e casual. De vez em quando, muito de vez em quando, ainda me rasgam um sorriso nos lábios.
Passados uns tempos, voltei a rever as velhas carteiras de madeira, mas com outras caras. Agora eu era o professor que ensinava a música da tabuada e o bê-á-bá. Quando tive de lhes ensinar as primeiras letras, comecei pelo a e i o u, mas, depois, vieram as consoantes e, já lá para o final, a letra S. Na ardósia preta do quadro, desenhei com o giz uma perninha, depois uma cabeça redondinha e o resto do corpo arqueado, como as costas de um gato sentado. Fiquei a olhar para o quadro. Deixei-me rir. Já não escrevia assim havia tanto tempo. Apaguei o que escrevera e disse aos miúdos: vou ensinar-vos um S mais simples. Querem ver? É assim... um risco, com duas curvas, como se fosse uma serpente, uma cascavel de cabeça levantada. Simples, não é?
Durante estes anos, eduquei centenas de crianças. A ardósia deu lugar ao quadro branco e o giz reformou-se perante o colorido dos marcadores. Agora, andam pela cidade várias gerações que escrevem um S de serpente cascavel. A minha Alice, com quem me casei sei lá há quanto tempo, não sabe desta história secreta que resguardei na minha intimidade. Trabalha no registro civil sem saber que cada S serpenteado que as pessoas assinam no bilhete de identidade é o perpetuar de um amor longínquo, que eu não vivi, mas que nunca esqueci. Uma pequena infidelidade da memória.
A Amélia continua linda. É funcionária na estação de correios, onde diariamente centenas de pessoas preenchem papéis e assinam o seu nome. À sua frente passam milhares de letras. Entre elas, milhentas serpentes cascavéis, sem que ela saiba que são serpentes, sem que saiba que são as suas serpentes, sem que saiba que são sonetos, sem que saiba que é um S de amor, a marca digital... do meu primeiro amor."
João Morgado, S de Amor, (capítulo do livro Diário dos Infiéis)
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* porque todas as letras, todas as palavras e todos os sons deveriam ser de amor. unicamente. ** Diário dos Infiéis é o primeiro romance do jornalista e escritor português João Morgado, lançado em 2010 (Diário dos Imperfeitos, de 2012, é o seu segundo romance e o número 2 da trilogia que pretende finalizar até 2014). nenhum destes livros ainda foi lançado no Brasil, mas, vencendo uma forte barreira emocional, comprei a edição em e-book e iniciei a leitura há poucos dias. o excerto acima é um capítulo inteiro - e cada capítulo é como um conto: encerra em si uma história completa.
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