De
todos os sentidos, a visão está em vantagem, nos dias que correm. Ver é
o mote. Ver tudo, ver bem, ver mal, mas ver. Ver para crer. Ver para
ser. Ver para saber. As coisas entram-nos pelos olhos adentro, sem
necessidade de utilização de qualquer outro sentido e sem necessidade de
que se dê sentido ao que se vê. As coisas vêem-se e imediatamente se
comprovam, porque estão visíveis. O mais importante é a quantidade
daquilo que se vê. E não são admitidos sinônimos mais elaborados e
complexos. Observar implica a utilização do intelecto, pelo que será um
ato demorado. Descarte-se a observação, não há tempo para
intelectualidades. Ver, só. Ver só. Ato isolado e que isola. Nada se
constrói, toda a informação está lá, já construída a pensar em nós. O
esforço é mínimo e a imaginação vai mirrando, para aumentar o campo de
visão.
Pouca atenção se dá ao que não é visível, ou que não está
lá. Se não se vê, não é. Se não é, não pode estar. A filosofia do ser é a
filosofia do ver. A visão é unilateral, unidimensional e superficial.
Não admira que o ser, nos dias de hoje, também o seja. Não há lugar à
observação da profundidade das coisas, muito menos às opiniões dos
restantes sentidos, que, muitas vezes, atraiçoam a visão ao negar que
aquilo que se viu é aquilo que é. A dispersão angustia, porque obriga a
pensar e a escolher qual a informação que queremos reter como a mais
correta. É mais fácil acreditar na verdade que os olhos contam. Mas,
falando em falibilidade, a visão não está isenta de responsabilidades.
Como é que os olhos podem reduzir um mundo cheio de variáveis,
dualidades e sombras, a informação clara, sintética e rigorosa sem
traírem o próprio mundo que observam e as regras contrárias que o
suportam?
A visão é, pois, um tradutor traidor. Porque insistimos
ainda em confiar no que nos diz, sem que peçamos segunda opinião aos
outros sentidos e ao intelecto, é algo que nos deveria intrigar. Mas
como a intriga é um ponto escuro no meio da claridade e só na claridade é
que vemos as coisas, descarte-se a intriga também. Os olhos só vêem o
que é visível. No escuro, não se consegue ver. O desconhecido, estando
coberto, está fora do alcance do olhar, que não lhe consegue medir as
formas. E, como a visão fica impotente, resolve defender-se, usando a
imaginação a seu favor. Inventa monstros e coisas horríveis por baixo do
manto de escuridão, para nos convencer a ir contra a nossa curiosidade
natural, que nos impele para tudo o que é desconhecido. A maior parte
das vezes, não nos aventuramos a tentar levantar a ponta do véu,
convencidos de que o que os olhos nos negam ver é para nosso bem e
autopreservação. Uma espécie de síndrome de Estocolmo. Tanto tempo
estamos cativos daquilo que os nossos olhos vêem por nós, que acabamos
por achar que este cativeiro nos é benéfico.
A visão é uma
gigantesca máquina de lavar roupa, onde pomos o mundo e de onde ele sai,
cada vez mais encolhido. Tudo se foi reduzindo ao visível, até o
invisível. A música passou a ver-se, mais do que a ouvir-se. Deus não
existe, porque não se mostra. O estilo importa mais do que o talento. As
ações valem mais do que os sentimentos. A nossa vida passou a ser
vivida em linguagem televisiva. Tudo rápido, tudo formatado, tudo para
encher o olho e alienar a mente. A visão é o Rei-Sol do nosso corpo. Até
ao dia em que a cabeça, farta do seu subjugo, ponha em marcha a
revolução dos sentidos, restabeleça a hierarquia no corpo, proíba a
passividade e obrigue os olhos a ver para lá daquilo que observam.
Ana Bacalhau - Ver, verbo passivo de sentido único
*
* Ana Bacalhau é cantora, portuguesa, vocalista da banda Deolinda e escreveu esta crônica - que eu não me canso de ler e reler - para a revista dominical Magazines, do jornal Diário de Notícias, em 01/07/12.