sábado, 23 de março de 2013

O pior desemprego do mundo


"De repente passa um cara que tinha me ouvido dizer que quem está desempregado está procurando serviço no lugar errado. Ele esperou todo mundo que estava empregado ir embora e me perguntou onde deveria procurar. E eu disse: dentro da gente
Quando se procura dentro da gente acontece uma coisa incrível: sempre se acaba fazendo o que gosta. 
Fazer o que a gente não gosta é o pior desemprego do mundo."

Hélio Leites 



  • o projeto que concebeu o vídeo acima parte da pergunta "o que é tristeza pra você?"
  • direcionada a artistas, gerou as mais diferentes respostas
  • todas, de um jeito ou outro, apontam para um caminho otimista. 
  • "tristeza em certo sentido até que é boa: ela faz ver coisas que a alegria não deixa ver", sintetiza o artesão Hélio Leites
  • economista de formação, Leites deixou o trabalho de mais de 20 anos em um banco para fazer obras que são miniaturas da vida
  • "sermão aos peixes na lata de sardinha" e outras séries de histórias que cabem em botões e caixas de fósforos
  • foi assim que ganhou do poeta Paulo Leminski, o cargo vitalício de significador de insignificâncias

  • o artesanato de Leites serve como metáfora:
  • não há problema algum em se reduzir escalas
  • que, tudo bem trocar o sucesso grande
  • por pequenas alegrias comezinhas
  • o curitibano, na imensa sabedoria dos simples,
  • retrata em suas criações que cada pessoa é o mundo espremido,
  • cada trabalho simples é importante 
  • como qualquer outro considerado grande:
  • a vida representada em uma caixa de fósforos
  • (as pequenas coisas, feitas com atenção, revelam-se em grandezas inexoráveis)

  • olhar para dentro quando o ensinado é sempre olhar para fora: 
  • o mundo, o sucesso, o reconhecimento dos outros... 
  • quando se muda a escala do olhar
  • o que se enxerga dentro é um universo vasto,
  • porém condensado...
  • já pensou no espaço que ocupa dentro de si
  • o amor, o entusiasmo, a curiosidade?


*









* ontem, uma sexta-feira, ouvi-me falando em uma conversa corriqueira, que os tipos que detestam o emprego e passam a semana esperando pelo seu final (a sexta feira), são na verdade desempregados - gente que não trabalha de fato. porque acredito que só o verdadeiro trabalho é que nos dá sustento. e o que sustenta um corpo infeliz e vazio de vida não pode ser chamado de trabalho. entretanto, não costuma ser tarefa fácil encontrar uma ocupação que nos sustente corpo e espírito. eles não estão nos classificados dominicais. há que se vasculhar em profundidade o avesso do corpo que habitamos: o mistério mutante e dinâmico que somos nós. ajuda se se é habituado a estar em silêncio, a ouvir os solilóquios internos, os queixumes, a perceber os pequenos prazeres... há que se estreitar o campo de visão para alargar as sensações.
** [esta é a segunda vez que posto o videozito acima. a terceira que cito Hélio Leites. e nem de longe a última vez que este tema me persegue. peço desculpas pela repetição. apesar de tanto, ainda não apreendi a lição....]

segunda-feira, 11 de março de 2013

i like my body when it is with your



gosto do meu corpo quando está com o seu
corpo. é novo como nascer de novo.
os músculos enrijecem os nervos eletrizam-se.
gosto do seu corpo. gosto do que ele faz.

gosto dos seus motivos e comos
de tatear as vértebras. os ossos.
a sua trêmula firme lisa suavidade que
eu quero mais e mais e mais de novo
beijar, gosto de beijar isso e aquilo tudo em você,
gosto de, lentamente, estocar e sentir o choque
elétrico na sua pele e o-que-quer-que freme
sobre a carne partida…. e de ver seus grande olhos

esmigalharem-se de amor e gosto de ter sob
mim você vibrando sempre novamente



e. e. cummings


  *








* do original: i like my body when it is with your
i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones, and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like, slowly stroking the, shocking fuzz
of your electric fur, and what-is-it comes
over parting flesh … And eyes big love-crumbs,
and possibly i like the thrill
of under me you so quite new

** [tenho encontrado prazer em traduzir poemas e que os autores me perdoem - pecado maior quando me atrevo eu a escrever.]

domingo, 10 de março de 2013

Se eles apenas aprendessem que o caleidoscópio que gira move a todos nós, um após o outro


  • na mesma semana que uma médica curitibana causa horror por "antecipar óbitos", principalmente de pacientes do SUS,
  • o ministro das finanças do Japão declara que os idosos deveriam se apressar em morrer ao invés de custar dinheiro ao governo em cuidados médicos até o fim da vida, 
  • chama de "povo tubo" os pacientes que não conseguem se alimentar - e completa:
  • "Deus nos livre de ser forçado a viver quando se quer morrer".

  • há poucos dias, na Inglaterra, o escritor Martin Amis comparou a população crescentemente envelhecida da Grã-Bretanha a "uma invasão de imigrantes horríveis, velhos e dementes, emporcalhando restaurantes, lojas e cafés"
  • e sugeriu que fossem instalados estandes de eutanásia nas ruas para que os idosos pudessem se matar
  • "Como a sociedade suportará esse tsunami grisalho? Posso imaginar uma espécie de guerra civil entre velhos e jovens daqui a uns 10 ou 15 anos."

  • enquanto isso, o belo e devastador filme austríaco O Amor
  • que retrata o inexorável ocaso de um casal
  • (a última fase da vida de uma mulher que decide morrer na intimidade de sua casa, acompanhada somente do olhar vazio de seu marido),
  • acumula estatuetas: Palma de Ouro, Globo de Ouro, o BAFTA de Melhor Filme Estrangeiro, filme do ano para a National Board of Review, quatro prêmios do Cinema Europeu e o Oscar de melhor película estrangeira.

  • [tento buscar algum sentido intrínseco nisto
  • mas o absurdo põe meu olhar à beira de um poço oco onde reverberam o horror e a dúvida:
  • será que na lenta e asfixiante descida até o inevitável
  • a única dignidade restante
  • aos que receberam o privilégio de uma vida longa
  • é esconder suas dores e sua humanidade
  • bem longe do olhar impaciente do mundo cruel?]  


*










* "there's a calm surrender, to the rush of a day, whem the heat of a rolling wind, can be turned away. there's a time for everyone, if they only learn that the twisting kaleidoscope move us all in turn. an enchanted moment, and it sees me through: it's enough for this restless warrior, that we've got this far... " [Can You Feel the Love Tonight foi a canção vencedora do oscar  de 1994, composta por Elton John, com letra de Tim Rice, para o fime O Rei Leão].** dos cantores do vídeo, só o que pude apreender é que são canadenses, de Oakville, Ontario; e costumam reunir-se nesta lanchonete, chamada Tim Horton's...

quarta-feira, 6 de março de 2013

Feminina [5]

"Eu não quero ser o líder. Eu me recuso a ser o líder. Eu quero viver obscuramente e ricamente em minha feminilidade.

Eu quero um homem deitado em cima de mim, sempre em cima de mim. Sua vontade, seu prazer, seu desejo, sua vida, seu trabalho, sua sexualidade a pedra de toque, o comando, meu pivô.

Eu não me importo de trabalhar, segurando a minha terra intelectualmente, artisticamente, mas como uma mulher, oh, Deus, como uma mulher eu quero ser dominada."
 
Anaïs Nin
*




* desculpe se crio polêmica, mas não compactuo com as celebrações do oito de março. mulheres não são seres emocionalmente superiores. homens não são os reis da insensibilidade. mulheres são tão humanas quanto os machos da espécie. perfeitinha do Lalau? Lalau já se foi: babau! temos muitos defeitos, nós mulheres. aliás, temos tantos defeitos que sofremos a vida toda para termos os mesmos direitos que os homens. mas não esqueço que antes de nascer, antes mesmo de receber meu nome, sou mulher. é com o feminino que me identifico. e aí reside toda minha força e beleza. ** na imagem, Maria Maddalena em Êxtase, de Michelangelo Caravaggio [1606].

domingo, 3 de março de 2013

Feeling this way, tonight

















* porque toda doença precisa antes de um corpo e todo corpo precisa antes de outro corpo.

** "Um asceta árabe que se chamava Sabet, passava a vida toda aos prantos. Chorava de maneira tão abundante e exaltada que acabou ficando doente dos olhos. Um médico examinou os olhos de Sabet e disse: 
- Não posso prescrever nenhum tratamento eficaz se não obtiver de você uma promessa.
- Que promessa? perguntou o asceta.
- Você tem que prometer que vai parar de chorar disse o médico.
Então o asceta, enfurecido, expulsou o médico, gritando:
- De que me servem os olhos se eu não puder mais chorar?"  [in, O Círculo dos Mentirosos - Contos Filosóficos do Mundo Inteiro, reunidos por Jean-Claude Carrière]

sábado, 2 de março de 2013

Só Sexo


Enquanto os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as coisas de que era capaz. Amavámo-nos como se o amor fosse apenas um suplente íntimo dessa revolução que nunca mais chegava. A revolução já tinha chegado, mas nós não sabíamos. Só em junho de 1974 se lembraram de nós, fechados naquela casa clandestina. Muitas vezes, ao longo da minha vida, desejei que nos tivessem esquecido ali para sempre. Desejo ingrato, infantil. Tive uma vida boa. Consegui ser a advogada que queria ser, cobrar bem aos ricos para defender melhor os pobres. Encontrei um homem que entende o amor como partilha absoluta – nunca senti o peso do trabalho doméstico ou da educação dos filhos. Tive dois filhos que só me trouxeram alegria e serenidade, e tenho já um neto que parece um reclame sobre o brilho da vida. E tive-te, atrás do espelho, todas as manhãs da minha vida.

Porque foi sempre para ti que me quis bonita, mesmo nos dias escuros. É em ti que penso, quando escolho a roupa ou escovo o cabelo, todos os dias. Na possibilidade de te encontrar, no acaso de uma esquina. Lisboa é tão grande e tão pequena – porque não havia de te encontrar? Queria ser a mesma, nesse encontro. A mesma, com a luz das rugas que me faltavam no tempo em que nos metíamos por dentro do corpo um do outro como se sozinhos fôssemos apenas pedaços de um corpo mutilado. Depois de saírmos da casa, deixaste de me procurar. Creio que te fazias encontrado comigo, mas como eu me fazia encontrada contigo, nunca cheguei a ter certeza que, de fato, me procuravas. Pouco importa. Posso ter inventado tudo, menos o fulgor perfeito dos nossos corpos juntos. Uma vida inteira não basta para apagar da pele o peso magnífico desse fulgor. Só sexo, disseram-me as amigas íntimas, quando eu ainda chorava com elas a saudade do êxtase. Só sexo. Fogo e palha, talvez tenham razão. Mas é disso que trata a vida, a minha vida: só sexo. Contigo. 

O prazer que meu corpo conhece é o que aprendeu no teu, e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para permancer em mim. Todas as noites me acaricio com os teus dedos, fecho os olhos e sugo os teus dedos sob o contorno dos meus e conduzo-te pelo meu corpo como tu me conduzias. Todas as noites tu entras em mim por todas as portas, a tua língua silenciosa desperta vertigens desconhecidas nas partes secretas das minhas orelhas e das minhas pernas e dos meus pés. Todas as noites sinto o castanho dos teus olhos se dissolvendo nos meus com uma felicidade quente, imensa, vejo teus quadris estreitos de rapaz dançando sobre meu ventre, nas minhas nádegas, todas as noites os teus dentes mordem o meu pescoço no sítio exato em que o meu corpo guardava a última fechadura, todas as noites volto a subir a esse monte dos vendavais só nosso. Só sexo, seja. 

Se eu contasse às minhas amigas que tuas palavras eram mínimas, sussurradas com um sorriso trocista de timidez, elas fariam troça de mim. Por isso contei apenas o essencial: que tu me fazias sentir bela. Que conseguiste que eu me sentisse bela a vida inteira. A cada vez que o espelho me anunciava mais uma marca do tempo, mais uma prega na carne, eu acariciava-a com teus dedos, sentindo o pazer que tu sentirias, ao descobrires novas rotas no mapa do meu corpo. 

Saí do consultório e pensei que tinha de te encontrar. Não sabia como, há pelo menos vinte anos que não tenho teu telefone, mas sei vagamente onde moras e onde trabalhas. Cinco e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro, falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo e dizes: “Tens outra vez o cabelo muito comprido”. Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como vai me ser útil esse teu elogio, nos meses que me faltam. Prendo-te a mão ao meu cabelo. Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se, por acaso, não quero ir até tua casa para ver umas fotografias dos tempos antigos. Fechas a porta e começas a beijar-me, primeiro os olhos, depois o lóbulo da orelha. Depois o pescoço enquanto teus dedos me abrem a camisa e me procuram os seios. 

Beijamo-nos de olhos abertos, como sempre, e é de olhos abertos que procuro cada uma das novidades do teu corpo, os sítios onde tua pele dobra, o cheiro agora mais adocicado do teu sexo. Entramos um no outro de olhos abertos, como se mergulhássemos num mar de silêncio e fogo escuro. A meio da noite peço-te que me deixes ficar contigo um mês – “só um mês, prometo. Posso?” Não me respondes, claro. A não ser que os beijos sejam uma resposta, e preciso acreditar que sim. Preciso dessa vida verdadeira que escondi debaixo da tua pele, antes que o cabelo me caia, antes que comecem os enjôos e as dores, antes que meu corpo seja tomado pelo cheiro miserável da doença. Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo.


Inês Pedrosa, in Fica comigo esta noite (Contos)


 











* Inês Pedrosa é escritora, da leva dos novos nomes da literatura lusófona contemporânea, assim como Valter Hugo Mãe, José Luis Peixoto, Jorge Reis-Sá, Miguel Sousa Tavares e Gonçalo M. Tavares. Seus romances e contos são versões pós modernas do tema humano por excelência - o amor - uma narrativa intimista, forte, delicada e visceral. ** [do livro que ilustra o post, não consegui encontrar outras referências além do local de onde saiu a imagem...]