domingo, 5 de dezembro de 2010

Da série Verdades Indissolúveis


O PIOR CEGO*

"Por que tantas pessoas são cegas para os próprios defeitos? Estaríamos todos, como disse Nietzsche, condenados a ver o mundo e a nós mesmos a partir de nossa perspectiva parcial e distorcida? A maioria se recusa a aceitar opiniões sobre si mesma que contradigam o que acredita. Alguns se recusam a ouvir a voz interior que, ao contrário da voz falada, não mente. Diz Millôr: "O pior cego é o que não quer ouvir". Quem elege como seu pior defeito ser perfeccionista, ingênuo ou franco não tem ideia do seu pior defeito. Essa cegueira me lembra da mulher com quem eu passei uma hora na cama tentando satisfazê-la. Quando desisti e gozei, ela perguntou se "ejaculação precoce" era um problema crônico meu. Meu irmão verborrágico se acha só "descritivo". Seus monólogos entupidos de minúcias podem durar tanto quanto uma peça curta. Quando pedi que me poupasse de detalhes em seus e-mails de sete páginas sobre problemas legais de uma herança, ele usou dez páginas para me prometer isso. Uma amiga não faz ideia de que é compulsivamente indecisa. Quando nos encontramos, é em lugar e hora que ela troca quatro vezes antes. Uma vez, quando disse como era difícil encontrar com alguém tão irresoluto, ela mudou de ideia várias vezes antes de admitir o problema. Um dia depois, voltou atrás, me acusando de sempre querer as coisas do meu jeito. Um ex-amigo não confia nos amigos: suspeita de motivos egoístas e dúbios por trás dos gestos mais generosos. Quando diagnostiquei sua doença, se recusou a acreditar em mim, dizendo que eu tinha algo a ganhar com a acusação. Sua incapacidade de confiar evitou que enxergasse sua incapacidade de confiar. Um de meus defeitos que suavizei: criticava, sem aceitar bem críticas. Quando amigos me diziam isso, gritava com eles, o que tendia a reforçar o argumento. Hoje, aceito melhor as críticas, porque revelam tanto sobre quem critica quanto sobre mim. Ainda sou crítico em relação às pessoas, mas apenas quando elas não estão presentes. Tentei ficar uma semana sem falar mal de ninguém, mas nunca passei do segundo dia. Também cometo o erro de compartilhar minhas opiniões polêmicas com desconhecidos, um risco social constrangedor.Meu terapeuta sugeriu que, para evitar esse desconforto, eu me tornasse mais aceitável socialmente. Mas minha voz interior disse que me tornar um camaleão social me exporia a risco ainda maior: não ser autêntico. Então, procurei um novo terapeuta, um capaz de reconhecer seus próprios defeitos tão bem quanto os meus."



  • Minha identificação com este texto é tão grande que não resisti em transcrevê-lo aqui.
  • Sempre que leio algo deste teor, minha primeira reação é de surpresa. "Como? Pensei que só eu sentira..." E, então, no momento seguinte, desato a rir, aliviada: "I'm normal, I'm normal!
  • Ninguém duvide: dá pra se divirtir muito sozinho.
  • Mas hoje, se der, ri comigo, também!

* MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, escreve às terças para a Folha de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário